Tratamento do lixo também é saneamento – Artigo O Globo

Questão está nas mãos do Senado

 

O Senado deve votar nesta quarta-feira o Projeto de Lei 4.162-A, que atualiza o Marco Legal do Saneamento básico. Aprovado em dezembro de 2019 na Câmara, o projeto contempla, entre outras propostas, medidas de segurança jurídica e viabilidade econômica de extrema importância para o setor de resíduos sólidos urbanos no Brasil.

Com a pandemia, demandas de saneamento se tornaram ainda mais urgentes, e a gestão segura do lixo provou ser mais essencial do que nunca, para evitar problemas de saúde pública e melhorar a qualidade de vida nas cidades. Mas, sem investimentos na destinação adequada e no beneficiamento dos resíduos, a fim de transformá-los em ativos, o lixo continua a representar um risco.

Os municípios gastam cerca de R$ 2 bilhões por ano para tratar o lixo produzido pela população. Mesmo assim, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), das 79 milhões de toneladas coletadas anualmente, 29,5 milhões foram parar em lixões sem qualquer controle ambiental.

O projeto de lei em votação traz duas propostas cruciais para o setor de resíduos sólidos: uma trata da arrecadação de recursos destinados ao tratamento do lixo; a outra, da obrigação do poder público em garantir esses recursos.

O modelo de PPP’s – Parcerias Público-Privadas – trouxe recursos privados e evolução tecnológica e ambiental para o setor, propiciando soluções de longo prazo para o tratamento e aproveitamento do lixo. Porém, a falta de segurança jurídica e de garantias de recebimento levaram as empresas que investiram a graves problemas financeiros, decorrentes da ausência de cobrança direta do usuário, por normativa pública, pelos serviços prestados, além da pouca efetividade de meios jurídicos aos quais recorrer em caso de inadimplência das prestações devidas pelas administrações municipais. Tal situação reduz a capacidade de investimentos e ameaça a qualidade e a própria sobrevivência do setor.

Em boa parte do país, os recursos para remuneração dos serviços de coleta e tratamento dos resíduos é cobrada como uma taxa no IPTU pelos municípios. Mas esse tributo tem grande número de isenções, inadimplência normalmente alta e arrecadação concentrada no início do ano, exigindo do poder público planejamento para honrar os compromissos nos demais meses.

Em seu artigo 35, o PL oferece uma solução, permitindo que a cobrança seja feita na fatura de outros serviços públicos, em comum acordo com a prestadora. A taxa pelos serviços de manejo de lixo poderia ser incluída na conta de luz, água ou gás, com os subsídios à população de baixa renda previstos no projeto. Desta forma, o fluxo de recursos seria garantido ao longo de todo o ano, fosse o serviço prestado por concessionária privada ou empresa pública.

Igualmente importante é o parágrafo que exige que o poder público garanta os recursos necessários para os serviços de gestão de resíduos sólidos no exercício fiscal, de maneira ambientalmente correta. As prefeituras deverão comprovar a viabilidade econômica e as fontes de recursos, por fluxo histórico e projeção de arrecadação futura.

A dificuldade de aplicar novas tecnologias se deve também à falta de incentivos para geração de energia limpa a partir dos resíduos sólidos. Em países desenvolvidos, o lixo é processado e transformado em ativos como biogás, energia elétrica e outros insumos. São soluções para problemas energéticos, sanitários e ambientais que, sem políticas institucionais bem estabelecidas, não têm como se consolidar.

O setor de tratamento de RSU gerou 332 mil empregos em 2018. Com a segurança jurídica e econômica defendida no projeto de lei, o mercado poderia investir cerca de R$ 14 bilhões por ano para gerar energia a partir do lixo no Brasil, sistema chamado de waste-to-energy. Isso implicaria em mais empregos, mais renda e mais impostos – cenário especialmente importante em uma crise pós-pandemia.

O PL 4.162-A é o primeiro passo para alcançar a segurança jurídica que permitiria, ao setor, evoluir nas tecnologias ambientais e, às concessionárias, sustentar seu trabalho. Porém, a aprovação da lei precisa estar associada a outros mecanismos de incentivo à geração de energia limpa por meio dos resíduos, já que este tipo de geração ainda não consegue competir com outras fontes energéticas tradicionais em termos de custos de produção.

A Unidade de Recuperação Energética (URE) do Caju, na Zona Norte do Rio de Janeiro, com possibilidade de ser a primeira usina waste-to-energy do país, é um dos projetos que podem ser viabilizados com a aprovação do Marco Legal do Saneamento, associada a outros mecanismos de incentivo à geração de energia através dos resíduos. Com licença prévia emitida pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), a planta vai tratar 1,3 mil toneladas de lixo por dia (14,5 % do volume que chega da capital na Central de Tratamento de Resíduos do Rio) e gerar 30 MW de energia elétrica, o suficiente para abastecer um município de 200 mil habitantes. Os efeitos são positivos para a economia do município e para o bem-estar da sociedade.

Está na hora de acreditar que lixo bem gerido é investimento. De transformar as 79 milhões de toneladas descartadas anualmente em ativos. De proteger o meio ambiente e gerar riqueza e insumos para o setor produtivo. O Senado tem em mãos a oportunidade de iniciar essa jornada de desenvolvimento.

Adriana Felipetto é presidente da Ciclus Ambiental, para artigo do jornal O Globo

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