Como vai a reciclagem no Brasil?
Especialistas do setor dão um panorama e debatem futuro da reciclagem no país
O que você sabe a reciclagem?
Infelizmente, em termos gerais, a reciclagem deixa muito a desejar. A média nacional está muito abaixo de países desenvolvidos. Com exceção do alumínio, os materiais tem baixos índice de recuperação e reinserção na cadeia produtiva. Mas se o índice de recuperação é baixo, as taxas de produção do plástico são altíssimas – na verdade, a 4ª maior em todo o mundo.
Claro que esses números causam indignação, mas a reciclagem também é responsabilidade do cidadão. É fundamental separar os recicláveis do lixo orgânico, de maneira que o caminhão da coleta seletiva possa destiná-lo corretamente.
Por conta do Dia Internacional da Reciclagem, a jornalista Mara Gama, da Folha de São Paulo preparou um conteúdo especial sobre o tema, com entrevistas com especialistas no tema. Confira a íntegra do conteúdo abaixo:
Aproveitando a data internacional da reciclagem, esta coluna publica entrevistas com pesquisadores e representantes do setor. No texto de hoje, falam os representantes das empresas de limpeza Carlos Rossin e Carlos Silva Filho. Na próxima semana, mais especialistas tratam do tema.
Carlos Rossin é diretor de Relações Institucionais e de Sustentabilidade do Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (Selur). Engenheiro, Rossin foi diretor de Sustentabilidade da PwC e conselheiro do Pacto Global da ONU em São Paulo. Carlos Silva Filho é diretor-presidente da Associação de Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe). Advogado, Silva Filho é também vice-presidente da Iswa, associação internacional do setor.
Para Rossin, o dia deve ser comemorado pelo destaque que o tema conquistou no mundo. “Anos atrás, pouco se conhecia ou mesmo se falava sobre a gestão de resíduos sólidos urbanos, incluída a reciclagem”, diz.
Mas, no Brasil, observa, a reciclagem não obteve ainda a relevância necessária. “Este ano, a Política Nacional de Resíduos Sólidos comemora 9 anos. Apesar de termos avançado, continuamos enviando praticamente metade de todo resíduo gerado no país para lixões —são mais de 3.000. Se não conseguimos avançar sequer na destinação adequada, é de se esperar que a agenda da reciclagem pouco tenha conseguido prosperar também, ao ponto de os percentuais, no geral, não alcançarem dois dígitos”, analisa.
Segundo Carlos Silva Filho, é preciso comemorar que o tema da reciclagem já está amadurecido no país nos setores público, privado e na sociedade, e as ações em várias frentes. Porém, segundo ele, é de se lamentar a carência de “ações estruturantes” para que os resultados sejam alcançados com a devida agilidade e efetividade necessárias. “Como ações estruturantes cito desoneração tributária, incentivo ao uso de matéria prima secundária e desburocratização dos gargalos logísticos.”
A seguir, trechos das entrevistas com os representantes das empresas.
Os índices da reciclagem no país seguem muito baixos. Por quê?
Carlos Rossin: Posso destacar dois importantes motivos: primeiro as iniciativas estão em sua absoluta maioria focadas na oferta de recicláveis e quase nada na demanda. Não adianta organizar a oferta (separação e coleta seletiva dos recicláveis), se não organizarmos a demanda destes materiais. Ou seja, se não houver mercado interessado em comprar. Os recicláveis concorrem com as commodities. Diferentemente de países europeus, o Brasil é abundante em recursos naturais e, portanto, o reciclável —sem subsídios e desonerações— tem mais dificuldades em concorrer com os recursos “in natura”, que são mais baratos.
Segundo, porque o setor de manejo e gestão de resíduos sólidos é uma atividade logística. É uma “Amazon” ao contrário. Ou seja, em vez de levar produtos para as residências, este setor coleta o resíduo de cada residência e escoa este material para fora da cidade. Considerando o porte territorial do Brasil e a baixa densidade demográfica da maioria de nossas cidades, existe um grande desafio para alcançar a economia de escala para aproveitamento econômico de certos recicláveis, especialmente aqueles que estão distantes dos centros industriais, onde ficam os compradores.
Carlos Silva Filho: Além da carência das ações estruturantes acredito que os números não avançam também porque existe uma total fragmentação da cadeia de reciclagem, com muitas ações desconectadas e informais principalmente no início da cadeia, e porque atualmente não existe viabilidade econômica para uma grande parte dos materiais. Esse mercado ainda não está estruturado no país e os números (que permanecem estagnados por quase uma década) demonstram exatamente essa desestruturação.
Mesmo cidades como São Paulo, com duas usinas mecanizadas, não deram o salto que poderiam ter dado.
Carlos Rossin: As duas usinas mecanizadas integram a organização da oferta, sem que de outro lado o poder público tenha gerado incentivos para que este material possa concorrer com as commodities de forma atrativa para a indústria. Os países que possuem altos índices de reciclagem estimulam a demanda removendo os tributos desta cadeia. Isto não acontece no Brasil. É um absurdo o recurso ser tributado duas vezes, como produto, e depois como produto reciclável. Além disso, mesmo desonerando a cadeia do reciclável, estes países ainda subsidiam o reciclável para que a conta feche e diminuam a pressão por recursos naturais —lógica da sustentabilidade e economia circular.
Carlos Silva Filho: Nesse caso, vemos uma outra face dos problemas enfrentados: o papel do cidadão, que é o elemento da maior relevância para o funcionamento de qualquer sistema de gestão de resíduos. Não adianta os municípios adotarem os melhores e mais avançados sistemas para coleta, separação e aproveitamento de resíduos se não houver a participação e engajamento do cidadão.
De acordo com pesquisa Ibope divulgada no Panorama 2017, da Abrelpe, 98% enxergam a reciclagem como algo importante para o país e 94% concordam que a forma correta de descarte é com a separação dos materiais recicláveis. Porém, 75% revelaram não fazer isso em casa.
A quantidade de materiais que chega nas centrais mecanizadas da cidade de São Paulo é praticamente a metade da capacidade que as mesmas têm, e além disso o percentual de rejeitos ao final do processo é elevado, reflexo direto desse comportamento do cidadão, que não separa seus resíduos em casa e quando separa o faz de maneira incorreta, colocando junto muitos materiais cuja reciclagem é inviável.
Quando e em que situação teríamos números melhores de reciclagem no Brasil?
Carlos Rossin: Se não trabalharmos na organização da demanda não haverá mudança significativa destes números. O Brasil precisa ter foco e priorizar. Em face da abundância de commodities, é preciso estruturar a demanda, desde o design do produto, passando pelo processamento adequado, para aproveitamento na forma de insumos competitivos em relação aos materiais “in natura”. Para isso é preciso desonerar as respectivas cadeias de reciclagem e, se necessário, subsidiar. Jogar todas as fichas tão somente na logística reversa impositiva ao setor produtivo —sem criar incentivos para estruturar um mercado reciclador efetivo, capaz de absorver naturalmente a oferta— constitui solução artificial capaz de criar uma dicotomia na relação produção/consumo, em detrimento da economia sustentável que deveria ajudar a desenvolver.
Carlos Silva Filho: Podemos ter, desde que o tema seja encarado como uma prioridade por todos os atores envolvidos, a começar pelo poder público, e que os recursos necessários para viabilizar os avanços sejam assegurados. Os números mostram o quanto estamos atrasados (o país envia mais de 40% dos resíduos coletados para unidades inadequadas, tem apenas 3% de reciclagem e 0,8% de compostagem). Esse quadro somente será revertido com investimentos em novas plantas e novas soluções tecnológicas. Porém isso tem um custo (de investimento e de operação), que supera o que está disponível atualmente. Se não houver uma suplementação dessa verba, mediante o pagamento pelos usuários, ficaremos cada vez mais distantes de resultados melhores. E quanto mais demorado for esse processo, maior ficará o déficit e mais recursos serão necessários. Basta ver os casos de sucesso que existem no mundo: nenhum sistema para de pé e funciona bem sem ter sua sustentabilidade econômico-financeira assegurada mediante remuneração pelos usuários.
Recentemente foi publicada uma portaria interministerial (274/2019) que trata de condições de licenciamento e operação de usinas de recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos no Brasil. Qual sua avaliação?
Carlos Rossin A recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos é uma solução adotada em alguns países. Especialmente aqueles em que a composição dos resíduos possui substancialmente mais material seco do que úmido (orgânico), como é o caso dos países europeus nórdicos, pois não é necessário gastar energia para remoção da água para depois incinerar. Não é de estranhar que a proposta do tratado da ONU para controlar a exportação de plástico para países subdesenvolvidos, que estavam se tornando os grandes lixões do mundo, tenha partido justamente da Noruega, um grande player da indústria da incineração para o qual o plástico é um grande insumo. O desafio da gestão e manejo de recicláveis no Brasil é enorme. Portanto, temos que estar abertos para avaliar as várias tecnologias de tratamento, sem dogmas, de modo a optar pelas mais competitivas.
Carlos Silva Filho A portaria veio atender a uma disposição da Lei 12.305/2010, para dar segurança jurídica a projetos de Recuperação Energética de resíduos, que é uma das modalidades para destinação final adequada de resíduos prevista na Lei.
A portaria sinaliza uma opção pela queima de resíduos em vez da reciclagem?
Carlos Rossin: Quem determina a opção a ser seguida não é a portaria e sim a existência ou não de um ambiente econômico favorável, seja para queimar ou reciclar. Por um lado, é o preço da energia e pelo outro é o preço das commodities que concorrem com aquele material reciclado. Com avanços tecnológicos, o mundo consegue cada vez mais produzir energia de forma menos poluente e barata e, portanto, soluções de incineração terão cada vez maiores desafios para concorrer com estas outras opções. Nos Estados Unidos, por exemplo, existe um declínio na incineração. Boa parte das plantas construídas no passado não estão conseguindo renovar seus contratos de venda de energia pois a energia hoje está mais barata do que era antes, e estas plantas estão se tornando grandes elefantes brancos.
Carlos Silva Filho: De forma alguma. A recuperação energética dos resíduos insere-se numa fase posterior à reciclagem, que é condição sine qua non para o funcionamento dos processos de recuperação energética, que utilizam justamente resíduos para os quais não há viabilidade de reciclagem, a exemplo de papel e plástico filme, materiais contaminados com gorduras e outras sujidades, papéis sanitários etc. Importante ressaltar que o cenário mundial mostra que as cidades que contam com plantas de recuperação energética de resíduos são as que apresentam os mais elevados índices de reciclagem. Mas, por outro lado, também importante lembrar que a viabilidade de projetos de recuperação energética depende de escala, de volume de resíduos, portanto, não é algo que se insere em qualquer localidade. No meu entender, tais projetos vêm para solucionar a demanda por destinação final nos grandes centros urbanos, nos quais há um grande volume de resíduos gerados e carência de áreas para instalação de unidades de disposição final, como aterros sanitários.
Foi aprovada a MP do Saneamento na comissão mista do Congresso. Ela indica um caminho aberto para a prorrogação dos lixões no país?
Carlos Rossin: Em que pese a prorrogação do prazo para eliminação dos lixões não ser desejável, o Projeto de Lei de Conversão 8/2019 teve pelo menos o bom senso de condicionar a dilatação dos prazos pelo titular dos serviços, em um universo máximo até agosto de 2023, à adoção de mecanismos técnicos e financeiros para viabilizar as soluções necessárias, afastando assim no horizonte a possibilidade de novas prorrogações.
Carlos Silva Filho: A MP contempla disposições que têm grande potencial de reverter a situação atual, destravando investimentos e viabilizando regras de desempenho por resultado e metas. Mas, acima de tudo, a MP prevê a necessidade de se assegurar a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento, estabelecendo com clareza essa possibilidade para os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos. No tocante à prorrogação dos prazos da PNRS, a redação trazida pelo substitutivo aprovado na Comissão valeu-se de bom senso e busca assegurar uma transição efetiva. A pressão dos municípios nesse assunto tem sido muito forte e o legislativo é sensível ao pleito. Outras iniciativas e até mesmo a versão anterior da MP seriam um grande retrocesso para o país. A solução escalonada e condicionada à existência de planos e sustentabilidade mostra-se mais realista e terá efeitos positivos mais amplos.