Artigo: Licitação da Varrição da Capital em “xeque”!

A licitação para contratação dos serviços de limpeza pública na Cidade de São Paulo levada adiante pela Prefeitura Municipal traz em seu bojo uma série de irregularidades. A principal foi não ter cumprido a exigência legal de elaboração e publicação prévias do Estudo de Viabilidade Técnica e Econômico-Financeira (EVTE), imposta pela Lei Nacional de Saneamento Básico de 2007 e Portaria MCid 557/2016, para evitar contratações inexequíveis.

Como o próprio nome já diz, o EVTE é o levantamento responsável por identificar a possibilidade de sucesso de uma nova contratação pública de serviços de saneamento, seja na área de água e esgoto, limpeza urbana e resíduos sólidos ou drenagem pluvial urbana, englobando as variáveis ambientais e econômicas, de modo a viabilizar uma contratação sustentável e benéfica ao Erário.

Para tanto, leva em consideração questões técnicas, comerciais, operacionais e econômicas, a fim de definir o modelo jurídico e operacional mais adequado às necessidades da população e condições do município licitante, estabelecer previamente o perfil dos concorrentes com estrutura e qualificação econômica e operacional para cumprir com as obrigações depois de escolhidos e ainda, é claro, determinar a faixa de valor a ser paga pela prestação desses serviços, para que tenham efetividade ao longo de todo o contrato.

Em contrário senso, a ausência do EVTE faz com que tudo seja feito às cegas, de forma alheia ao interesse coletivo, o que de todo jeito se traduz em desperdício de recursos públicos. Ao não proceder o estudo, a Prefeitura paulistana excluiu a sociedade civil e os agentes do setor de Saneamento e Resíduos Sólidos da discussão sobre como os serviços devem ser prestados, apartando-os da Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de São Paulo, abrangida pelo edital. Não foram realizadas consulta e audiência públicas para expor o novo modelo adotado pelo Município – talvez porque sem o EVTE não há nem base para apresentação de um projeto, ainda que mínimo.

Também não alenta a assertiva da Municipalidade acerca da existência de “projeto” datado de 2003. Isso porque, ainda que existente fosse, destoa da licitação em curso, eis que esta foi lançada em 2017 e, desde então, teve todas as características tecnológicas, financeiras e ambientais alteradas por mais de 05 vezes.

Vale lembrar que as últimas contratações por parte do município na área de limpeza pública da Capital deram-se em caráter emergencial, evidenciando inexistirem conhecimentos aprofundados sobre o que é de fato planejado, executado e acompanhado e, muito menos, uma interpretação crítica de dados capazes de refletir a realidade atual neste segmento.

Essa falta de definição das características desejáveis para a gestão e execução dos serviços licitados abre espaço para improvisos, que irão se revelar prejudiciais para toda a população. Nesse contexto, a ausência de informações exigidas pelo EVTE é, além de ilegal, absolutamente temerário.

Ao priorizar exclusivamente o preço em detrimento da competência executória das operadoras, sem especificar com precisão os serviços a serem ofertados à população, a Administração Municipal transfere indevidamente essa sua responsabilidade para as operadoras vencedoras do certame, gerando a dualidade de ficarem ou ao sabor do arbítrio do Poder Contratante ou livres para prestar os serviços da forma como bem entenderem, porquanto impossível criar mecanismos e padrões adequados para o monitoramento e a avaliação de desempenho das contratadas. O que se desenha, portanto, é o desperdício, a ineficiência e a improbidade administrativa.

Desse modo, quando algo dá errado cuida-se de buscar a penalização das empresas do setor, esquecendo-se que as mesmas foram contratadas tão somente como executoras do edital originado do Poder Público e que estão limitadas a atuar de acordo com os parâmetros licitados, expondo-as a grave insegurança contratual e gerando prejuízos e transtornos para a cidade e munícipes, sendo certo que a imposição de multas não terá o condão de reparar as irregularidades que ora se apontam no certame.

Mais, os princípios da transparência e da eficiência, tão importantes em nossos dias, avultam desrespeitados. Por isso, a ausência de EVTE e da audiência e consulta públicas nele previstas não devem ser entendidos apenas como erros formais, pois configuram muito mais que isso: o caminho para os piores vícios na aplicação do dinheiro público.

Para evitar que isso aconteça, as entidades representativas do setor de limpeza urbana e resíduos sólidos ingressaram no Judiciário com medidas destinadas a fazer com que a moderna legislação setorial de resíduos sólidos seja respeitada. Contratos mal elaborados, sem regras claras, que não demonstrem viabilidade técnica e econômica, servem apenas para trazer mais riscos à atividade empresarial e impedir a modernização do setor, desvalorizando a atividade.

Se existe algo que a história brasileira mostra à exaustão é que improvisos na esfera pública sempre se revelaram ruins em médio e longo prazo. No momento em que tanto se debate a eficiência estatal e se realiza a maior licitação de limpeza pública do País, o Município de São Paulo não pode desperdiçar a oportunidade de manter o elevado padrão de serviços da Cidade, buscando soluções sérias, profissionais e embasadas tecnicamente para evitar armengues na sua gestão e execução, fechando janelas para ilicitudes na esfera pública.

Conclui-se assim que o cumprimento da legislação e as boas práticas sanitárias e ambientais requerem da Municipalidade uma gestão cada vez mais técnica dos serviços de limpeza pública, que se torna impossível quando suas especificidades e complexidades são ignoradas e o edital não dá conta de captar as inovações trazidas pelas atuais Lei de Diretrizes Nacionais de Saneamento e Política Nacional de Resíduos Sólidos para sustentar um eficiente nível de desempenho na prestação desses serviços essenciais aos moradores da Cidade de São Paulo.

Dra. Fernanda dos Reis, Advogada, Perita Judicial Ambiental e membro participante dos Fóruns Brasileiros de Controle da Administração e de Contratação e Gestão Pública.

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